CERCEAR A MAGISTRADA EM SUA LIBERDADE DE OPINIÃO E EXPRESSÃO, NEGA A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E ULTRAJA A CONSCIÊNCIA DA HUMANIDADE – Por José Renato de Oliveira Barcelos


José Renato de Oliveira Barcelos[1]

[…] Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. (Art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos). Sem grifos no original. 

[…] Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. (Declaração Universal dos Direitos Humanos – Preâmbulo). Sem grifos no original.

            O recente episódio envolvendo o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, que segundo matéria publicada pelo siteMigalhasem 08 de abril próximo passado teria encaminhado à corregedoria geral da justiça do trabalho, para as devidas providências, notícia de suposta participação da magistrada Valdete Souto Severo (TRT da 4ª região) em evento de cunho político-partidário, revela uma prática de política judiciária que merece ser submetida à crítica e ao debate público.

            A magistrada Valdete Severo, em entrevista publicada pelo jornal Sul 21na mesma data da veiculação da matéria referida, manifestou surpresa com a medida divulgada. Esclarecendo as condições de sua participação no debate “Comentários a uma condenação anunciada e à prisão política de Lula”, que se realizou na última terça-feira em Porto Alegre, evento esse público e suprapartidáriopara a qual foi convidada na condição de professora e cidadã, referiu que a atividade nada teve de ilegal, pois “a liberdade de expressão de pensamento é garantida como direito fundamental. A Constituição não proíbe juízes e juízas de serem seres políticos. Há vedação apenas ao exercício de “atividade político-partidária” (art. 95), acrescentando que “manifestar opinião em evento público não é exercer política partidária”.

            A primeira questão que parece oportuna destacar neste episódio diz respeito ao fato de que a magistrada Valdete Severo, para além da função que exerce e do cargo que ocupa, é, antes de mais nada, umser humano. E é precisamente essa condiçãohumanaque lhe outorga – previamente às responsabilidades e atribuições que a autoridade da jurisdição lhe atribuem, por competência, alçada e por força do cargo que ocupa – a valênciaque a investe na singular posição de membro da família humana, para utilizar uma expressão grafada no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos

            Portanto, esta parece ser a primeira – e talvez a principal – e antecedente razão pela qual a “providência” encaminhada pelo Ministro contra a magistrada assume contornos de cerceamento da liberdade de palavra. Ou seja: a medida, antes mesmo de violar as prerrogativas funcionais inerentes ao cargo que ocupa, ataca a magistrada em sua dignidade inerente à condição de pessoa humana, direito fundamental e intrínseco à natureza do serhumano. Por essa razão primordial a interpretação da medida interposta em um plano cognitivo de dimensão alargada revela, além de sua inépcia jurídica, conduta lesiva à consciência da humanidade. A falhaprojeta-se portanto a um domínio mais amplo que é o espaço de todos nós, seres humanos que somos. 

            Não pode ser outra a conclusão a que se chega quando se examinam os preceitos legais que regem a matéria, sobretudo se cotejados com os mandamentos constitucionais pertinentes e respeitado o princípio da hierarquia das normas. Nesse sentido, o verdadeiro espírito da norma, especialmente no que respeita aos dispositivos constitucionais incidentes, não é identificável e nem mensurável mediante interpretação isolada de um ou de outro preceito. Exsurgirá, sim, para o hermeneuta atento, do exame do conjunto das normas que visam ao mesmo fim. E esse exame há de conduzir-se, há de ser balizado pelo absoluto respeito à hierarquia das normas em que são inseridos os mandamentos perquiridos. O exame, sem esta visão do todo, do conjunto das normas voltadas para o mesmo fim, sempre será pericárdico, superficial, por isso imprestável para conduzir ao correto e justo entendimento. Ao estudioso da lei compete ir, sempre, ao âmago de cada dispositivo legal e pesquisar, em toda profundeza e amplitude, a legislação sob seu exame.

            Na dicção Constitucional, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Por outro lado, o projeto de sociedade proposto na Carta Política de 1988 consagra a construção de uma sociedade livre, justa e solidária igualmente como objetivos da República, elevando ainda a livre manifestação do pensamento à categoria de direto fundamental. 

O texto constitucional dispõe igualmente que desde que observados os limites da norma fundamental, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, não sofrerão qualquer restrição. Veda, por outro lado, toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, bem como consigna expressamente que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação.      

A liberdade de expressão e manifestação do pensamento, aliás, é assegurada por várias outras normas de ordem infraconstitucional, destacando-se a Lei n° 7.524/86, a Lei n° 9.610/98, a Lei n° 8.389/91 e a Lei n° 7.524/86. Por outro lado, Tratados Internacionais celebrados e ratificados pelo Brasil consagram de forma incontestável esse direito, dentre os quais se destacam a“Declaração Universal dos Direitos Humanos” de 1948, a“Convenção Americana sobre Direitos Humanos” (CADH – Pacto de São José da Costa Rica) de 1969 e a“DeclaraçãoInternacional deChapultepec” de 1994.

Não será necessário um grande esforço de raciocínio para que se perceba de forma clara que o que é vedado ao magistrado – pela letra do inciso II do § 1° do artigo 95 da Constituição Federal – é a dedicaçãoà atividade político-partidária, não o exercício de um direito constitucionalmente asseguradocomo referido. Da mesma forma, não pode haver dúvida sobre o significado de dedicaçãoque como verbo transitivo direto que é, obviamenteindica: pôr em ação ou em atividade, praticar, cumprir os deveres, as obrigações inerentes a…(cargo, ofício, etc.), tal qual o que efetivamente realiza o magistrado no exercício de sua função e no cumprimento de suas prerrogativas.

A Lei Complementar n° 35/79 (Estatuto da Magistratura), por seu turno, ressaltando o necessário resguardo dos valores de dignidade e independênciado magistrado,determina que são deveres do magistrado “cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício”, como qualquer cidadão comum. Se tal encargo, por óbvio inerente a sua condição de pessoa humana, por um lado o faz tributário das obrigações que esta condição lhe impõe, por outro, o torna credor do conjunto de direitos assegurados à pessoa humana, igualmente inerentes a esta peculiar qualidade.   

Para a realização dos valores democráticos e do projeto de sociedade que a Constituição Federal propõe e assegura, é imprescindível que a sociedade conte com magistradas e magistrados independentes, de elevada autoridade moral, forte espírito crítico e consciência social. Conscientes de sua  missão em um país de proporções continentais e com profundas desigualdades sociais como o Brasil, emancipados como mulheres e homens de seu tempo, cabe aos magistrados inspirar na sociedade a necessária confiança em um Poder Judiciário fortalecido por seu compromisso institucional em que a promoção efetiva de uma justiça para todos o torne sensível, de fato, ao resguardo e proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana, conquista primeira da evolução histórica dos direitos humanos como patrimônio universal. 


[1]Advogado. jrenatobarcel@gmail.com

Liminar assegura área em que ferreiros do Jockey Club atuam há 4 décadas

Fonte: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

A Juíza de Direito Karla Aveline de Oliveira, titular do 2º Juizado da Vara Cível do Foro da Tristeza da Comarca de Porto Alegre, concedeu liminar a favor de cinco ferreiros que há mais de 40 anos trabalham e ocupam uma área dentro do Jockey Club do Rio Grande do Sul. Eles pedem na Justiça a manutenção da posse do bem e indenização pelas benfeitorias realizadas ao longo das décadas, como construção de galpões e plantio de várias espécies de árvores, inclusive frutíferas.

Caso

Os cinco autores ajuizaram ação de interdito proibitório cumulada com pedido indenizatório contra o Jockey Club do Rio Grande do Sul e Multiplan Empreendimentos Imobiliários S.A., alegando que desde 1977 trabalham como ferreiros no Jockey Club, o qual colocou à disposição um terreno ao lado das cocheiras dos cavalos para que eles pudessem construir seus galpões de trabalho.

Eles alegaram que cinco galpões e uma casa foram construídos com dinheiro próprio e que estão na posse mansa e pacífica desta parte do imóvel há 40 anos. Os autores sustentaram ainda que a Multiplan divulgou o Projeto Jockey Área II, que engloba o local em que o grupo trabalha, levando à condição de perda da posse. Em uma tentativa de acordo não houve êxito.

Decisão

No termo de audiência consta que a Multiplan está preparando uma nova Vila Hípica onde não haveria local para estes trabalhadores, visto que não houve planejamento de espaço para esta finalidade. A mudança está prevista para o mês de março.

A Juíza Karla Aveline ressaltou que, em audiência, falou-se bastante do dano imaterial que os autores estão na iminência de sofrer, já que ficarão sem trabalho a partir de março, depois de mais de 40 anos trabalhando como ferreiros para os treinadores que cuidam dos cavalos alojados nas baias do Jockey Club. Como se vê nas gravações realizadas, tratam-se de homens com mais de 60 anos de idade, ferreiros há bem mais de 40 anos de trabalho no Jockey Club e que sempre estiveram à disposição dos treinadores, das 6h às 22h. 

Ao longo da decisão, a magistrada fez uma relação entre o avanço do mercado imobiliário e a chegada de novas tecnologias que afastaram o apostador do turfe. Esses seriam motivos que levaram ao empreendimento que será construído na área, ao custo aproximado de R$ 2,5 bilhões. O presidente do Jockey Club afirmou que não interessa mais ao clube a manutenção de um espaço próprio para a ferraria na nova Vila Hípica, já que outros ferreiros trabalham com tecnologias mais modernas, sem necessidade de usar espaço e as ferramentas utilizadas pelos autores desta ação.

Nesse contexto o grupo de trabalhadores recorreu ao judiciário postulando a proteção da posse do local onde exercem seu ofício por mais de 40 anos.

Ao conceder a liminar, a magistrada afirmou: “Essa força de trabalho humana, que já foi imprescindível ao negócio desenvolvido pelo Jockey Club, quando passa a ser considerada desnecessária, não pode ser meramente ¿descartada’ sob um viés meramente economicista e contratual, impondo-se, por conseguinte, a cuidadosa análise dos impactos pessoais, sociais, familiares e psicológicos da decisão tomada por quem sempre se valeu dessa especialidade.”

Para ela, é preciso reconhecer e fortalecer as garantias dos direitos socioeconômicos, pois não há direitos humanos ou estado de bem-estar social sem a satisfação dos principais direitos, como no caso, o direito humano e universal de ter direito a um trabalho.

Por fim, vedou que a Multiplan e o Jockey Club turbem/esbulhem a posse dos autores, delimitada aos galpões, construções da ferraria, no perímetro das árvores já plantadas e identificadas pela ré. A magistrada também determinou que seja permitido o acesso dos ferreiros para que possam exercer o seu ofício livremente até decisão judicial em contrário. “Qualquer ato que venha a ser tomado em detrimento da posse dos autores (turbação ou esbulho) implicará na incidência de multa no valor de R$ 30 mil para cada evento.”

As partes terão prazo para contestar a decisão.

Proc. nº 001/11801189995 (Porto Alegre)

O CCQQ apoia o Manifesto dos Direitos das Vítimas de Perseguição Política na Ditadura Civil-Militar Brasileira

Fonte: Carta Capital

No documento, 71 entidades e 376 pessoas acusam a gestão Bolsonaro de tentar fazer uma ‘revisão histórica’

Após o presidente Jair Bolsonaro dar carta branca para Damares Alves investigar supostos crimes de corrupção na Comissão da Anistia, entidades e membros da sociedade civil publicaram um manifesto em que se posicionam contra notícias falsas propagadas e a instauração da CPI pretendida pela ministra. No documento, 71 entidades e 376 pessoas acusam o Governo Federal de tentar fazer uma “revisão histórica” para suavizar a Ditadura Militar no Brasil.

O Manifesto em Defesa dos Direitos das Vítimas de Perseguição Política na Ditadura Civil-Militar Brasileira também aponta incongruências da matéria “A Farra das Indenizações”, da Revista IstoÉ. A publicação relata, por exemplo, que muitos dos que receberam os benefícios seriam “petistas” – quando, na verdade, existem pessoas anistiadas por histórias de perseguição anteriores à criação do PT.

No documento, desmente-se também que o ex-presidente Lula recebeu 56 mil reais de pensão da Comissão da Anistia. O pagamento não foi gerenciado pela organização, que não existia na época em que Lula foi indenizado pelo acidente trabalhista que sofreu nos anos 80. Toda a reparação econômica dos valores foi determinada pelo Ministério do Trabalho, já na década de 90. Estranhamente, a publicação da IstoÉ não mencionou, também, que a Comissão da Anistia foi consolidada no governo de Fernando Henrique Cardoso, pela MP N°2.151/2001.

“Até hoje não foi revisada a continuidade dos torturadores nas fileiras das carreiras de Estado e que seguiram recebendo seus salários e aposentadorias manchados de sangue. Não notamos o mesmo interesse da revista e dos políticos que defendem a moral e a transparência das contas públicas em propor uma CPI, ou em buscar quantificar o montante dos valores pagos a agentes públicos, civis e militares, que causaram os danos pelos quais o Estado hoje é responsável por ressarcir”, denuncia o manifesto.

Caça às bruxas

O presidente Jair Bolsonaro declarou nas redes sociais que a auditoria seria realizada para investigar benefícios concedidos a “vítimas da ditadura” – expressão escrita exatamente assim, entre aspas -, no intuito de cumprir com normas de transparência dos recursos públicos. Além dele, seus filhos Carlos e Eduardo endossaram o discurso do pai – o último, posando com livros publicados pela Comissão, escreveu que “a todo momento, a esquerda tenta reescrever a história posando de vítima, mentindo”.

Ao longo do documento, que possui 20 páginas, é possível encontrar links de acesso para bancos de dados do Ministério da Defesa, do Ministério da Justiça e da Controladoria Geral da União, com a possibilidade de pesquisar, pelo nome, os valores recebidos por cada anistiado político.

Leia a íntegra do Manifesto.

Em três episódios reportagem sintetiza a questão envolvendo a Fazenda Arado Velho – Belém Novo – Porto Alegre

Primeiro episódio:

 

Segundo episódio:

 

Terceiro episódio:

 

Leia mais sobre a Fazenda do Arado Velho localizada em Belém Novo, Porto Alegre(aqui).

Texto sobre a retomada Guarani Mbya (aqui).

O signo da intolerância

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Foto: Facebook.

 

As mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes há exatos 20 dias, podem ser examinadas, discutidas e debatidas por diversos ângulos, todos igualmente tristes e devastadoramente cruéis.

No entanto, parece haver um traço comum a todas estas faces da crueldade: o signo da intolerância. A intolerância de gênero, de opção sexual, de condição social, de classe, de cor, de condição política.

Sim: porque não devemos jamais esquecer que o crime que vitimou Marielle e Anderson foi um crime político. Um crime para o qual as autoridades policiais, passados estes intermináveis e dolorosos 20 dias, não dispõem de nada além dos resultados do Disque Denúncia.

“Diversas mas não Dispersas”, um dos temas mais caros à Marielle quando em questão o móvel da condição da mulher em um contexto social capturado pelo patriarcado grotesco e presunçoso que ainda impera na sociedade brasileira, profundamente desigual e preconceituoso no que diz com a ontologia do feminino, parece no entanto apontar não somente para a sobrevida de sua luta, mas para a superação definitiva da intolerância, ainda que distante no tempo e no espaço.

Além disso, não devemos esquecer também que Marielle Franco foi uma parlamentar democraticamente eleita com mais de 46.500 votos. Esta condição lhe investia de um poder popular concreto e também simbólico em que as reais consequências de uma brutal e repentina supressão, talvez ainda não adequadamente mensuradas, por certo vão muito além de sua condição pessoal e profissional.

Nesta dimensão, sua morte hedionda significa também a transposição de um limite, uma fronteira, a raia entre o poder popular real e simbólico magistralmente incorporado e exercido por Marielle. Este crime assume, por isso, o figurino de atentado contra a própria democracia. Por isso um crime político, porque um crime contra a democracia!

O Coletivo A Cidade que Queremos, ao reafirmar de forma veemente a defesa da democracia e a solidariedade e crença nos valores e nas lutas sustentados e defendidos por Marielle Franco, marca aqui sua posição de denúncia deste crime inumano, pela punição dos culpados e pelo combate intransigente à intolerância de qualquer espécie.

Marielle para sempre!

Povo Mbyá Guarani colhe os frutos da retomada de suas terras

por Cida de Oliveira, da RBA publicado 10/12/2017 12h38

Fonte: RBA

No nordeste do Rio Grande do Sul, próximo ao litoral, 27 famílias indígenas consolidam dez meses da retomada de suas terras de maneira pacífica e autônoma
por Cida de Oliveira, da RBA publicado 10/12/2017 12h38
ANA MARIA BARROS PINTO

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No litoral norte do Rio Grande do Sul, 27 famílias indígenas consolidam dez meses da retomada de suas terras de maneira pacífica e autônoma

São Paulo – As espigas colhidas do pequeno milharal em meio à clareira são simbólicas para as 27 famílias Guarani Mbya de Maquiné, município localizado no litoral norte do Rio Grande do Sul. Mais do que alimento, são os primeiros frutos de uma terra retomada em 27 de janeiro, de forma autônoma e pacífica, por um povo que não voltava a esse território ancestral desde que foi expulso pela última vez, há mais de 80 anos.

Os 367 hectares que foram retomados pelas famílias Guarani correspondem à fazenda experimental da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), extinta em dezembro passado, com a aprovação do chamado Pacote de Maldades do governador José Ivo Sartori (PMDB), que liquidou diversas outras fundações e institutos de pesquisa.

“Decidimos retomar nossa terra quando soubemos da extinção da Fepagro e que essa terra, de nossos ancestrais, seria vendida para construção de condomínios”, conta o cacique André Benites, 36 anos.

Conforme ele explica, as famílias se uniram para discutir o assunto e decidiram ocupar a terra de surpresa. Nem a Fundação Nacional do Índio (Funai) e nem o governo estadual seriam avisados. Entraram então de maneira pacífica – traço do povo, segundo Benites – e deixaram claro: “Não queremos instalações, salas, materiais, computadores, nada disso que não nos pertence. Apenas a nossa terra, de onde nossos ancestrais já foram expulsos por tantas vezes”.

A retomada, considerada inédita no Rio Grande do Sul justamente por ter sido conduzida de maneira autônoma pelos indígenas, sem a tutela do Estado, é também uma reação ao descaso dos governos com os esses povos, o Mbyá inclusive.

“Estamos esquecidos na beira de estradas, vivendo em acampamentos precários. Queremos viver a nossa cultura com dignidade, que o governo reconheça isso. Meu povo estava cansado de viver de favor, na terra dos outros, como eles queriam, sem ser do nosso jeito. Queríamos estar na terra que é nossa, para criar os nossos filhos conforme queremos. Não podíamos mais ficar vivendo assim, nem ficar mais esperando que a Funai ou o governo olhassem para nós e resolvessem fazer o que é justo”, diz o cacique.

Construção

Com a retomada da área reivindicada, a primeira ação dos Mbya foi construir a casa de rezas, uma vez que foram guiados por seus deuses para a reconquista da terra. Só depois passaram a construir suas casas.

A Tekohá Ka’aguy Porã (aldeia mata sagrada) que aos poucos se ergue, em ato de justiça aos que vivem hoje e em memória dos antepassados guarani, que tiveram suas terras invadidas e roubadas, consolida a primeira retomada no Rio Grande do Sul.

“Conhecemos muito bem essa mata, de onde voltamos a tirar frutas silvestres, remédio, e as águas onde nossos filhos estão pescando, aprendendo a caçar e a viver conforme nossa cultura e tradição”, conta Benites. “Desde que estamos aqui, a alegria foi voltando. Estamos felizes, nossos filhos alegres. Ninguém mais ficou doente”, conta a liderança, como em um brinde a este dia internacional dos Direitos Humanos, celebrado neste domingo (10), que tem tão pouco a comemorar.

Benites conta que a iniciativa teve apoio de diversos setores e, embora ainda não tenha havido embates com o estado, nem repressão policial, há insegurança do ponto de vista jurídico, já que tramita um processo de reintegração de posse do governo de Sartori contra a comunidade indígena. A definição sobre a permanência dos indígenas na área deverá ser chancelada pelo Ministério Público Federal e pelo Poder Judiciário.

Pela Constituição Estadual do Rio Grande do Sul (Ato das Disposições Transitórias Nº 14) e disposições da Constituição Federal (artigo 231), o tema deve ser tratado por meio da instância política para regularizar a permanência na área, cuja reivindicação é legitima, contribuindo assim para a recuperação da dignidade do grupo, num contexto de instabilidade e abandono histórico a que estavam relegados.

No início de outubro, uma comissão formada por membros do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Cepi), da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha e da Diretoria de Direitos Humanos da Associação dos Procuradores do Estado (Apergs) esteve na aldeia. O filósofo Ignácio Kunkel, atualmente em exercício na Divisão Indígena da Secretaria de Desenvolvimento Rural, e o procurador do Estado Silvio Jardim, que integra o Cepi e a Apergs, além de militar no coletivo A Cidade que Queremos, de Porto Alegre, integraram a comissão. E assinam um relatório em que analisam a situação do ponto de vista jurídico.

Para eles, além das casas tradicionais, o plantio de milho em pequenas clareiras e roças no entorno das casas indicam a convicção de que o Estado reconhecerá e respeitará a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental à diversidade e territorialidade do povo indígena, por meio da criação da Reserva Indígena no local.

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Encontro denuncia desmonte do sistema de direitos humanos no RS

FONTE: RS Urgente

Ação da Justiça e da Brigada Militar na reintegração de posse da Ocupação Lanceiros Negros foi apontada como exemplo de desrespeito a protocolos de conduta estabelecidos por essas próprias instituições. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Ativistas e representantes de entidades e órgãos públicos denunciaram, no início da noite desta quarta-feira (28), o processo de desmonte do sistema de direitos humanos no Rio Grande do Sul. A denúncia foi feita durante o Encontro Estadual de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, promovido pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Presidente da Comissão, o deputado Jeferson Fernandes (PT) destacou que o Conselho Estadual de Direitos Humanos segue sendo a principal referência, mas precisa ser fortalecido para que não se resuma a um espaço formal. “O quadro que vivemos é muito grave. Além do sistema de direitos humanos não estar funcionando, instituições públicas estão sendo hegemonizadas por um pensamento fascista”.

No encontro, realizado na Sala Adão Pretto, foram feitos vários relatos de violações de direitos que estão ocorrendo nas mais diferentes áreas no Estado, sem que os órgãos e autoridades responsáveis por sua defesa atuem em sua defesa. Pelo contrário, em vários casos, instituições do Estado estariam participando direta ou indiretamente dessas violações. O caso do despejo das famílias da Ocupação Lanceiros Negros foi citado em várias intervenções como exemplo disso. Entre as violações de protocolos de conduta existentes para esse tipo de ação, foram destacadas o fato da mesma ter sido realizada à noite, mesmo com a presença de crianças no prédio, a ausência de representantes do Conselho Tutelar, de ambulâncias e a prisão do deputado Jeferson Fernandes, que estava tentando mediar o conflito. “Depois de prender jornalista, o governo Sartori cometeu a proeza de prender um deputado também”, lembrou Milton Simas, presidente do Sindicato dos Jornalistas do RS.

Carlos D’Elia (Vermelho), do Comitê Estadual Contra a Tortura, destacou o contexto mais geral no qual essas violações vêm ocorrendo, marcado por um golpe parlamentar, judicial e financeiro que vem se repetindo em outros lugares do mundo. “Esse ataque está ocorrendo no mundo inteiro. A Constituição está sendo rasgada pelo Parlamento e isso também está passando pelo Judiciário e contando com o apoio dos grandes meios de comunicação”.

Conselheiro da Comissão de Anistia durante dez anos e professor da Faculdade de Direito da PUC/RS, José Carlos Moreira chamou a atenção para o caráter sistemático das violações que atingem os direitos nas mais variadas áreas. Para ele, houve uma demasiada fragmentação das lutas por direitos nos últimos anos, o que dificultou a construção de uma narrativa mais unificada de defesa dos mesmos. Na mesma linha, Raul Elwanger, do Comitê Carlos de Ré, lembrou que não foi completado o processo de justiça de transição na passagem da ditadura para a democracia, preservando a impunidade de muitos violadores de direitos que voltam a agir hoje.

Entre as muitas violações de direitos que vêm ocorrendo no Rio Grande do Sul, foram citadas as cometidas contra os povos indígenas, contra os movimentos de ocupação de moradia, o crescimento dos casos de homofobia, o desmonte das políticas públicas para mulheres e do sistema público de prevenção a AIDS, a situação de vulnerabilidade de um grande número de crianças colocadas em abrigos, o aumento da violência policial, a criminalização dos movimentos sociais e dos ativistas que tentam resistir a esse processo de desmonte.

O deputado Jeferson Fernandes chamou a atenção para o fato de que a maioria dos processos de reintegração de posse estão ocorrendo em áreas e prédios do Estado. Coincidentemente, acrescentou, a venda de áreas do Estado para a iniciativa privada não está passando mais pelo Parlamento. O parlamentar sugeriu uma investigação sobre uma possível relação entre as ações de reintegração de posse e as áreas que estão sendo passadas para a iniciativa privada sem o conhecimento do Parlamento.

(*) Publicado originalmente no Sul21.

Recados de Habitat III: é possível universalizar o direito à moradia? Por Jacques Alfonsin

Fonte: RS Urgente

Jacques Távora Alfonsin

Vai-se encerrando a Conferência da ONU, Habitat III, prevista para reunir pessoas do mundo inteiro, em Quito, de 17 a 20 deste outubro, para estudar os graves problemas urbanos e suas projetadas soluções em defesa do direito à cidade, garantidos os direitos humanos fundamentais de toda a humanidade residente neste cada vez mais problemático espaço da terra.

Especialistas em Direito Urbano, assistentes sociais, lideranças de ONGs e movimentos populares, pastorais de Igrejas, líderes espirituais de outras religiões, representantes oficiais de países de vários continentes, autoridades civis, mídia internacional, foram ouvidas/os em inúmeras mesas de debate e oficinas, realizadas tanto como parte da programação oficial, como de assembleias organizadas paralelamente.

O direito à cidade, o direito humano fundamental social à moradia, a função social da terra urbana, o direito de participação democrática da população urbana na elaboração, na execução e na avaliação das políticas públicas de interesse da cidade, especialmente dos Planos Diretores, mobilidade, preservação do meio ambiente, rejeição de qualquer tipo de despejo forçado e violento, garantia de destino certo para pessoas removidas por estarem em áreas de risco, tributação progressiva sobre vazios urbanos e descumprimento das funções sociais da propriedade, saneamento básico, serviços públicos de saúde, educação, transporte, segurança, assistência social, água, energia, recolhimento adequado de resíduos e sobras, estiveram sob atenção e lembrança de exemplos bem ou mal sucedidos.

Junto a esses problemas, também o estabelecimento de zonas e áreas de interesse social, de instrumentos jurídicos de defesa de pessoas deficientes físicas, crianças e adolescentes, idosas, grupos LGBT, pobres sem teto, moradoras/es de rua, vítimas de racismo e outros tipos de discriminação, entre inúmeras outras preocupações das/os participantes, foram objeto de discussões que serviram de base para encaminhar propostas concretas de validade político-jurídica a figurar na Declaração final da Conferência.

Não conseguimos identificar todas as organizações populares brasileiras presentes na Conferência, com exceção do IBDU (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico) e do FNRU (Fórum Nacional da Reforma Urbana), ambos com destacada atuação, tanto nas mesas da programação oficial, quanto nas paralelas.

São conhecidas as críticas, em grande parte fundadas e procedentes, sobre as esperanças criadas nessas Conferências da ONU, especialmente junto ao povo pobre sem teto, posteriormente frustradas pelos fatos. Pode não servir de contraponto a isso uma simples reunião em oficina paralela à programação oficial da Conferência, organizada pelo IBDU e pelo FNRU, com lideranças de movimentos populares, advogadas/os, arquitetas/os, de várias partes do mundo, inclusive estudantes de Direito da Universidade de Quito. Mas que o debate lá desenvolvido deixou uma forte impressão de frutuoso efeito futuro, isso pareceu fora de dúvida. Como parte integrante do direito à cidade, serviu de assunto para as/os presentes, não só recordarem e celebrarem muitas conquistas de direitos devidos, especialmente ao povo pobre das favelas urbanas de todo o mundo.

Desde a Conferências Habitat I, realizada em Vancouver (1976), e Habitat II, em Istambul (1996), mesmo que reconhecidamente insuficientes, as/os presentes nessa oficina promoveram um estudo detalhado e muito balizado na realidade e nas necessidades urbanas reveladas pelo público sobre suas cidades. As possibilidades abertas ao direito à cidade por várias propostas sugeridas pela Plataforma Global pelo Direito à Cidade, para redação da qual contribuiu decisivamente o Instituto Polis de São Paulo, receberam então as críticas do que se pode antecipar de atuação concreta em defesa desse direito no curto, no médio e no longo prazo.

Apareceram novos e convincentes paradigmas de interpretação da função social da propriedade, cobrada e sancionada não só como uma hipótese de exercício desse direito, mas sim, como a convergência de um direito alheio sobre o mesmo objeto de propriedade, existente, válido e eficaz, difuso e titulado por toda a humanidade, sempre que esse direito se exercer sobre terra, seja ela urbana, seja rural. Não há mais como conceber-se essa função como uma forma de legitimar, por simples previsão em lei, todos os maus usos, os abusos e os riscos inerentes ao exercício e gozo do direito de propriedade. Ela tem de ser cobrada e sancionada sobre o objeto desse direito e não sobre sua abstrata previsão em lei.

A legitimidade da segurança de toda a posse urbana, quando exercida para garantir moradia, mesmo quando não titulada, como acontece nas favelas, por exemplo, também recebeu o apoio de não poder mais se reconhecida como simples poder de fato, mas sim como direito. A imagem bíblica de Javé determinando a Moisés que retirasse a sandália dos pés, pois a terra onde ele pisava era sagrada, foi recordada pelas/os presentes como uma forte e motivadora imagem de ação futura das/os participantes nessa Conferência. A terra como sujeito de direito é mãe (Pacha Mama, na linguagem indígena), na forma prevista pela nova Constituição da Bolívia, parece bem servir de base para isso.

Quem sai dessa Conferência Habitat III retira a sandália dos pés, como Moisés, e se junta ao povo pobre e trabalhador das cidades de todo o mundo, em busca de uma terra-cidade prometida de libertação, bem-estar, solidariedade e alegria, uma casa comum, na linguagem da Laudato Si do Papa Francisco. Vai disposto a enfrentar o deserto da terra-cidade escravizada e reduzida a mercadoria, do mercado ditando a regra da sua distribuição, da ideologia patrimonialista e privatista concentrando espaço excludente e discriminatório, matando a utopia da convivência urbana fraterna e justa, própria de uma terra suficiente para todas/os. Agora, tudo indica que a esperança vai ter voz, vez e não será frustrada.