Como sacrificar política e socialmente o solo urbano

Fonte: Sul21

Por Jacques Alfonsin

A ampliação das vias de acesso do povo às instituições que se encontram a seu serviço, constitui-se numa das mais caras conquistas verificadas na história das reivindicações populares junto aos Estados democráticos de direito. Além dos referendos, dos plebiscitos e da iniciativa popular, que a Constituição Federal brasileira previu como direitos políticos no seu artigo 14, audiências públicas são convocadas a miúde, ora por órgãos públicos, ora por pedido da própria sociedade civil, para se debater e decidir questões que mereçam ser enquadradas no que a Constituição bem qualificou como soberania direta no parágrafo único do seu primeiro artigo.

O próprio Poder Judiciário, com a Justiça Alternativa e seus Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, além de outras formas de mediação, vem abrindo novas possibilidades de – mesmo no âmbito de processos onde se buscam sentenças capazes de colocar um fim até em conflitos onde estão presentes direitos multitudinários – encontrar-se solução negociada e justa para as partes.

No âmbito da administração municipal de Porto Alegre, nada disso está se verificando, pelo menos no que concerne à sua política urbana. De acordo com o artigo 39 da Lei Complementar 434/99, do Plano Diretor da cidade, que regula o CMDUA (Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental) se reconhece, dentre outras, como competências deste Conselho, as de “zelar pela aplicação da legislação municipal relativa ao planejamento e desenvolvimento urbano ambiental, propor e opinar sobre a atualização, complementação, ajustes e alterações do PDDUA (Plano diretor de desenvolvimento urbano e ambiental); promover, através de seus representantes, debates sobre os planos e projetos que incidam nas Regiões de Gestão do Planejamento; propor, discutir e deliberar sobre os planos e projetos relativos ao desenvolvimento urbano ambiental; receber e encaminhar para discussão matérias oriundas de setores da sociedade que sejam de interesse coletivo; zelar pela integração de políticas setoriais que tenham relação com o desenvolvimento urbano ambiental do Município; propor a programação de investimentos com vistas a assessorar a implantação de políticas de desenvolvimento urbano ambiental para o Município; aprovar Projetos Especiais de Impacto Urbano de 2º e 3º Graus, bem como indicar as alterações que entender necessárias;

Os poderes atribuídos por lei ao CMDUA, enumerados neste artigo, que dizem respeito diretamente ao solo urbano de Porto Alegre, às garantias devidas a um ambiente saudável, de modo a refletir os objetivos de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, como prevê a parte final do caput do artigo 182 da Constituição Federal, estão sendo literalmente desrespeitados pela atual Presidência do Conselho, exercida pelo titular da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smams), senhor Maurício Fernandes.

Não há sessão do CMDUA que matéria da mais alta relevância para a conservação daquilo que interessa permanecer intocado no solo urbano ou do que precisa modificação, seja essa emergencial ou de longo prazo, que a legislação municipal, a do Estado, a do Estatuto da Cidade e até da Constituição Federal não sofram infringência.

Isso fica provado até pelas atas das sessões realizadas pelo CMDUA, surpreendentemente não mais degravadas de uns tempos para cá. A sua presidência e a da representação do município junto ao Conselho, atropelam, conforme o caso, decisões que exigem notoriamente mais detido exame, transformando o Conselho num Conselho proibido de aconselhar.

O regimento interno atualmente vigente, que não foi sequer objeto de votação sobre a sua redação final, pelo CMDUA, está sendo imposto pela presidência com um artigo que deixa o plenário totalmente nas suas mãos. No artigo 5, inciso X, a ele foi atribuído o poder de: “fixar o tempo das manifestações em Plenário, garantida a participação dos Conselheiros”. Essa garantia virou letra morta, pois, dependendo do que a presidência já antecipou como relevante ou não, segundo o seu exclusivo juízo, cesse qualquer discussão sobre o que ele previamente já decidiu. Um/a conselheiro/a que seja relator/a de algum processo que esteja sob exame não pode mais sequer pedir diligência a não ser com o consentimento do plenário. O tal novo regimento prevê a possibilidade, agora, até de as votações do CMDUA serem feitas virtualmente sem a presença das/os votantes…

Cada pedido de licenciamento relacionado com qualquer empreendimento que impacte o meio urbano, por exemplo, pode e deve passar pela apreciação do CMDUA. Em certos casos, isso envolve matéria relativa a licenças de profundo efeito sobre toda uma região da cidade. Não é pouca coisa, para ser tratada de um modo tão desorganizado como está acontecendo até aqui, desde que o Plenário deste Conselho foi eleito.

O pior de tudo é que todo esse empenho de se tratar qualquer licença como um caso isolado, indiferente ao impacto urbanístico que o empreendimento respectivo comporta, é uma grave violação daquilo que própria Constituição consagrou como direito à cidade, uma novidade afinada com o que de mais moderno existe em matéria de planejamento submetido legalmente, em cada cidade, à competência de Conselhos como o CDMUA, hipótese que o seu presidente ignora ou substitui pelo seu arbítrio. Ele trata uma possibilidade de atuação importante como essa na base do sim ou não e do como ele quer. Cada vez que um/a Conselheiro/a oponha alguma resistência ou modificação do pedido em causa, é considerada antecipadamente como improcedente ou inoportuna “contrária ao desenvolvimento da cidade”, seja uma generalidade aleatória desse tipo aceita sem qualquer exame ou contrariedade. Com esse voto antecipado, justifica-se o veto a qualquer outra decisão. Que poder deliberativo, previsto em lei para o Conselho, resta a este diante de um reducionismo desta espécie?

Como já aconteceu anteriormente, o presidente do CMDUA vai obrigar a representação popular e sociedade civil a denunciar ao Ministério Público, como já fizeram com sucesso anteriormente, as violações de direito que ele está praticando, não sendo impedidas sequer por manobras escapistas do tipo requentar, a cada sessão do Conselho, discussão sobre questões regimentais, meramente formais, notoriamente tendentes a neutralizar toda e qualquer oposição ao seu modelo ditatorial de agir.

Lamentável. É tal a distância que a Administração Pública do Município mantém atualmente com o seu corpo técnico e com a sociedade porto alegrense que uma notícia recente publicada no Jornal Comércio revelou a intenção do prefeito de contratar uma auditoria externa que auxilie o Poder Executivo a formular alguma proposta de modificação do plano diretor ou toda uma nova lei a respeito. Ora, foi justamente este Conselho, em suas composições passadas, que coordenou o primeiro plano diretor da cidade e as modificações subsequentes. Essa onda avessa ao debate, portanto, impulsionada pelo Poder Executivo do Município, denunciam existir um arraigado preconceito e má vontade contra os espaços de democratização da administração pública onde as organizações da sociedade civil alcançaram representação. Ela comporta hipóteses piores para o prefeito e para o presidente do CMDUA: despreparo, ignorância, autoritarismo, ausência de espírito público, ou até a má intenção de desrespeitar esse Colegiado.

Diante de um flagrante desrespeito às competências legais do CMDUA que o último preside, era de se esperar alguma demonstração de brio, coragem, por mínimas que fossem, frente a intenção manifestada pelo prefeito. Até agora, nada. Sua renúncia, assim, a um encargo para o qual tem revelado tanta inaptidão, tão grande aversão ao debate democrático, ao direito à cidade e ao seu povo, fariam muito bem a Porto Alegre.

Nota de entidades em defesa de uma política urbana de efetivação do direito à cidade

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Os primeiros dias de 2019 têm sido marcados pelo anúncio de diversas medidas de desmonte institucional em diferentes políticas federais. No campo da política urbana, não foi diferente, tendo sido até mesmo extinto o Ministério das Cidades, órgão responsável pela articulação institucional com Estados e municípios e incumbido da implementação da política urbana em nível nacional. Diante desse quadro extremamente preocupante, as entidades e movimentos subscritos vêm se manifestar em defesa de uma política de desenvolvimento urbano que efetivamente assegure o direito à cidade para toda a população brasileira.

A criação do Ministério possibilitou que o desenvolvimento urbano fosse tratado de maneira integrada, articulando as ações e programas do governo federal de apoio às Prefeituras e aos Estados na área de habitação, saneamento, mobilidade e planejamento urbano. Destaque-se aqui seu papel no diálogo direto com as Prefeituras dos mais diferentes perfis, de maior ou menor porte, integrantes ou não de regiões metropolitanas, situados em áreas rurais, no litoral, no cerrado e na Amazônia.

O Ministério das Cidades teve um papel central no desenvolvimento de ações de capacitação de corpo técnico do poder público de forma a cumprir as diretrizes gerais do desenvolvimento urbano em respeito à enorme diversidade existente no país.

Além dos avanços institucionais, o Ministério das Cidades criou o também recentemente extinto Conselho Nacional das Cidades, garantindo a realização de maneira inovadora da gestão democrática das cidades em nível federal com a realização de conferências nacionais com a participação da iniciativa privada, governos municipais e estaduais e da sociedade civil.

O Ministério das Cidades foi fundamental, sobretudo, na aprovação do marco jurídico urbanístico consolidado no Brasil na última década, a partir da regulação das políticas setoriais reunidas em torno da habitação e regularização fundiária (Lei Federal nº 11.124/05; Decreto Federal nº 5.796/06; Lei Federal nº 11.481/07; nº 11.952/09, nº 11.977/09, nº 13.465/17); do saneamento ambiental e resíduos sólidos (Lei Federal nº 11.445/07; Decreto Federal nº 7.217/10; Lei Federal nº 12.305/10; Decreto Federal 7404/10); do transporte e mobilidade urbana (Lei Federal 12.587/2012), das áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos (Lei Federal nº 12.608/12; art. 42-A, Estatuto da Cidade) e das regiões metropolitanas (Estatuto da Metrópole, Lei Federal nº 13.089/15).

O desmonte de políticas consolidadas, através da redução de Ministérios, além de violar direitos, não garante necessariamente o aumento da eficiência na implementação de políticas públicas ou do necessário combate à corrupção e desvios de recursos. Muito pelo contrário, a extinção do Ministério das Cidades significa um enorme retrocesso na busca pela integração das políticas urbanas; na captação de recursos internacionais por parte do próprio governo através de bancos de fomento, os quais valorizam a existência de um Ministério próprio sobre a temática das cidades e do desenvolvimento urbano; na implementação das agendas internacionais, como com a Nova Agenda Urbana e a Agenda 2030; no diálogo entre União, Estados e Municípios, na gestão democrática das cidades, na garantia de efetividade do marco jurídico-urbanístico e, consequentemente, na concretização do direito à cidade de todos e todas.

Por tais razões, exigimos a implementação do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, fruto de anos de discussão no âmbito do Conselho Nacional das Cidades e passo fundamental para uma política urbana realmente articulada entre os entes da federação. Demandamos ainda que o recém instalado Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano seja formado através da eleição de conselheiros dentre seus pares, não podendo ser conformado apenas pela indicação por parte do Poder Executivo sob pena de ferir o princípio da democracia participativa. Por fim, as organizações abaixo manifestam-se pela defesa de uma política urbana efetivamente comprometida com a melhoria das condições de vida nas cidades brasileiras para toda a população e pelo restabelecimento do órgão responsável pelo apoio aos municípios na promoção do Desenvolvimento Urbano no Brasil.

Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU

Acesso – Cidadania e Direitos Humanos

Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – Núcleo RS

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – ANPARQ

ANEAC – Associação Nacional dos Engenheiros e Arquitetos da CAIXA

Bigu Comunicativismo

Br Cidades

Cdes Direitos Humanos

Gaspar Garcia

Cendhec Ong

Centro Popular de Direitos Humanos – CPDH

Coletivo A Cidade que Queremos

Cidade mais Humana

Coletivo Massape

CONAM – Confederação Nacional das Associações de Moradores

Conselho Federal de Serviço Social – CFESS

CAUS – Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade

Direitos Urbanos

Federação das Entidades Comunitárias do Ibura Jordão – FIJ

Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional – FASE

Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal – FENAE

Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas

Fórum Justiça /RS

Fórum sobre Trabalho Social em Habitação de São Paulo

Grupo de Pesquisa Direito Territorialidade e Insurgência/UEFS

Grupo de Pesquisa Lugar Comum/UFBA

GTA – Grupo Técnico de Apoio

Habitat para a Humanidade Brasil

Irfup

Instituto Metropolis

IAB RS

Laboratório de Estudos da Habitação – LEHAB/UFC

Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos – LABHAB/FAU-USP

Laboratório de Habitação e Cidade – LabHabitar/FAUBA

Movimento das Mulheres Sem Teto de Pernambuco – MMST/PE

Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM

Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos – MTD

MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto

Núcleo Aplicado de Defesa das Minorias e Ações Coletivas – NUAMAC da DPE/TO

Núcleo de Assessoria Jurídico Popular – NAJUP

Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da DPE/ES – NUDAM

Núcleo de DH e Tutela Coletiva da DPE/PI

Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais – NEMOS/PUCSP

Núcleo de Habitação e Moradia da DPE/CE – NUAM

Núcleo de Terras e Habitação da DPE/RJ

Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da DPE/SP – NE-HABURB

Rede de Mulheres Negras de Pernambuco

Rede Interação

Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Informal – SINTRACI

Terra de Direitos

União dos Movimentos de Moradia

União Nacional por Moradia Popular – UNMP