CONTEÚDO do ofício da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo-Coetrae/RS, remetido ao Sr. Prefeito Municipal, contendo análise e recomendações acerca do tema envolvendo a retirada de circulação dos veículos de tração humana utilizados pelos coletores de material reciclável em Porto Alegre.
______________
Ofício 001/2017/COETRAE/RS Porto Alegre, 06 de março de 2016.
A Sua Excelência, o Senhor,
Nelson Marchezan Júnior,
Prefeito Municipal, de Porto Alegre,
Praça Montevideo, nº 10,
Nesta Capital.
Assunto: informações da Lei Municipal nº 49.123 de 18 de maio de 2012.
Excelentíssimo senhor Prefeito,
Reporto-me inicialmente ao similar de número 001/2016/COETRA/RS, de 09/08/2016, encaminhado ao Sr. Prefeito Municipal de Porto Alegre, versando sobre os efeitos da Lei Municipal nº 10.531, de 10/09/2008, mais especificamente as disposições que tratam da proibição da circulação de “veículos de tração humana-VTH” no trânsito do Município.
A Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo-COETRAE, instituída pelo Decreto nº 49.123, de 18/05/2012, instância de articulação de políticas públicas voltada para a erradicação do trabalho escravo no Estado do Rio Grande do Sul, no âmbito de suas atribuições, analisou a resposta ao ofício supracitado, veiculada no Ofício nº 573/2016, de 01/09/2016, firmado pela então titular em exercício da Secretaria Municipal de Governança Local da Prefeitura da Capital, basicamente pelo desenvolvimento dos trabalhos do Programa “Todos Somos Porto Alegre”.
Conforme informações até então trazidas a membros da Comissão, quando da primeira abordagem do tema, o Município de Porto Alegre não teria atendido às disposições do artigo 2º e parágrafo da Lei Municipal nº 10.531, que, editada em 10 de setembro de 2008, previu para 10 de setembro p.v. a retirada dos “veículos de tração humana-VTHs” das vias da cidade, prazo esse que foi prorrogado por seis meses, via norma aprovada pelo Legislativo Municipal em 25/08/16.
Reafirma-se, primeiramente, que os veículos de tração humana são utilizados por número expressivo de pessoas que, organizadas ou não em associações e cooperativas, fazem da coleta de
resíduos e materiais recicláveis no município, a geração do trabalho e renda para si e suas famílias, de forma penosa e desgastante.
Sabe-se, igualmente, que Porto Alegre é uma cidade com elevado padrão de consumo e a correspondente geração de resíduos, que cresceu 30% em seis anos — desde 2008 até 2014 — passando de 0,86 kg para 1,12 kg por pessoa, por dia, em média. Apesar da coleta seletiva, uma ínfima parte, apenas 4,6% de todos os recicláveis, são efetivamente aproveitados. Em outras palavras, até 23% dos resíduos sólidos que Porto Alegre encaminha ao aterro de Minas do Leão poderiam permanecer na cidade. Significa que 276 toneladas/dia de lixo, em outras palavras, 276 mil quilos de material reaproveitável não são encaminhados diariamente para tratamento, segundo a prefeitura da Capital. E no Brasil, cerca de 32% do lixo é reciclável, mas apenas 2% acaba de fato passando por processos que permitam o reaproveitamento. Com isso, a média de reciclagem é de 2 kg por habitante/ano, muito abaixo de países como EUA e Alemanha, que beiram os 200 kg por habitante/ano. Todos esses foram divulgados no 7º Fórum Internacional de Resíduos Sólidos realizado na Capital em junho/2016.
Tal quadro demonstra que Porto Alegre ainda está distante da aplicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos-PNRS instituída pela Lei nº 12.305/2010, que busca evitar danos ou riscos à saúde pública e à segurança e minimizar os impactos ambientais que a geração de desses resíduos ocasiona.
Essa realidade estaria bem pior se não fossem as ações de um exército de cidadãos e cidadãs, popularmente conhecidos como “papeleiros” ou “catadores”, organizados em 21 cooperativas na Capital, verdadeiros protetores do meio ambiente que fazem da coleta de material reciclável a geração do trabalho e renda para si e suas famílias, e promoção de cidadania, ainda que de forma penosa e desgastante.
Contrariamente a essa relevante e fundamental atividade para a Capital, o Município de Porto Alegre não vem cumprindo a Política Nacional de Resíduos Sólidos, não só deixando de integrar os catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis nas ações de compartilhamento da responsabilidade pelo ciclo de vida dos produtos, como, valendo-se da Lei Municipal nº 10.531, aprovada em 2008, ainda prevê tirar dessas pessoas, a partir de 10 de março de 2017, o carrinho de
coleta, seu principal instrumento de trabalho, sem que uma alternativa perene e efetiva lhes tenha sido proporcionada para compensar ou minimizar o efeito danoso dessa ação.
Consigna-se que o Programa “Todos Somos Porto Alegre”, ainda que louvável, não alcançou ao desígnio de fomentar o trabalho e geração de renda, conforme duas disposições. Por exemplo, desde sua instituição, consoante informações prestadas no Ofício nº 573/2016, até junho/2016, houve abordagem a 2.352 pessoas de um universo de cerca de 8.000 catadores na cidade; foram qualificadas 801 pessoas (34,05% do total); e encaminhadas a atividades com renda 632 deles, ou seja, apenas 26,87% dos abordados, sem que se tenha notícia da continuidade dos vínculos estabelecidos pelo Programa. Outro dado revela que no Programa de Inclusão Produtiva na Reciclagem, foi implementada uma média de 14 atendimentos por mês entre janeiro/2015 e junho/2016, bastante limitada em relação ao universo de envolvidos nessa atividade.
Dito isso, impõe-se registrar ainda, que além de violar o direito fundamental à dignidade e ao livre exercício da profissão, a retirada dos instrumentos de trabalhado, ou seja, os veículos de tração humana tipificadas na lei municipal, obrigará os catadores a uma jornada excessiva e em condições ainda mais penosas no trabalho, a fim de cumprirem uma meta de coleta que permita um ganho mínimo para o sustento.
Do exposto, a Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo-COETRA/RS, no uso de suas atribuições, e de acordo com os artigos 1º, II e III, 3º, III, 5º, XIII, 170, VII, da Constituição Federal; 157, I e II, e 159, I a X, da Constituição Estadual; e artigos 6º, VIII, 7º XII, 8º, IV, 17, V, 18, § 1º, II, 19, XI, 21, § 3º, I, e 42, III, da Lei Federal nº 12.305, de 02/08/2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, além de outras disposições legais pertinentes, RECOMENDA ao Município de Porto Alegre que:
I – Seja mantido o Programa “Todos Somos Porto Alegre” como alternativa de fomento de trabalho e geração de renda aos trabalhadores da atividade de coleta de material reciclável na cidade; e
II – Seja retirada a eficácia, ou revogado, mediante provimento legislativo específico por iniciativa de Vossa Excelência, as disposições da lei municipal que
tratam da proibição da circulação de “veículos de tração humana-VTH” utilizados pelos trabalhadores da atividade de coleta e material reciclável na cidade.
No aguardo de uma posição favorável às presentes recomendações levadas a Vossa Excelência, subscrevo-me.
Atenciosamente.
Cintia Bonder,
Diretora do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania,
Coordenadora da COETRAE/RS.